21 de julho de 2004

TER GARRA SEM TER GARRAS


Descrever-se é, antes de tudo, tentar fazer com que os outros nos vejam da forma como nós nos vemos. Pensando bem é um exercício interessante, visto que passamos boa parte de nossas vidas fazendo o caminho inverso: tentando parecer com a idéia que os outros têm de nós.
Comecei a roer unhas muito cedo, minha mãe costuma dizer que roía antes mesmo de ter dentes...será possível? O problema não era o fato de eu roer unhas por quaisquer motivos, mas o incômodo que tal “atividade” causava nos outros. Morávamos no mesmo prédio, então cuidar da vida alheia para alguns membros da minha família era um passatempo, comigo era diversão na certa. “Vai engolir uma unha um dia desses e furar as tripas”, afirmava a minha avó, que sempre se preocupara em cuidar de mim, mesmo que, para garantir seu sucesso, fosse preciso apelar para o terrorismo. “Isso aí estraga os dentes que é uma beleza”, repetia, de hora em hora, minha tia Neisa que, ironicamente, fumava mais de um maço de cigarros por dia demonstrando não se preocupar muito com seus próprios dentes. “Os dedos dela são engraçados, parecem cabeças de cobra!”, dizia meu primo Rafael, quando me apresentava de forma muito peculiar aos seus colegas; mal sabiam eles que o Rafa tomou mamadeira até os 10 anos e roia as unhas dos pés. “Isso não fica bem pra uma mocinha...olha só, tu não pode nem pintar as unhas”, aconselhava minha tia Carmem, manicure profissional, que não pôde me persuadir nem com a promessa de me conceder direito vitalício de usufruir suas habilidades gratuitamente. “Quando é que tu vai parar com isso?”, questionava a minha mãe com o rosto meio decepcionado; confesso que, se tal vício não me fosse tão necessário, teria largado só para não vê-la direcionar para as minhas mãos aquele olhar de pena...por ela eu teria mudado, mas não pude.
É engraçado como comentários que me entristeceram, hoje me fazem rir. Deve ser a máxima de que tudo na vida muda ou depende do ponto de vista...não é assim? Eu mudei, não rôo mais as unhas, parei literalmente da noite para o dia: passei a tarde na cadeira de espera do dentista roendo unhas, preocupada por ter que usar aparelho e no dia seguinte não roí, nem poderia se quisesse. Meus “vigilantes” nem perceberam, só quando minha tia, na presença deles, pronunciou: “Olha só...quem diria...vou fazer tuas unhas para que tu fique bem bonita”. Na verdade fui quem menos mudou; os outros mudaram tanto que nem moram mais em Porto Alegre enquanto eu continuo, inclusive, no mesmo bairro.
Eles mudaram tanto que nem me criticariam se tivessem me visto roer unhas no dia do casamento do meu único irmão; nem tentariam me assustar com histórias sobre tripas furadas se eu tivesse roído até os dedos enquanto assistia à quantidade absurda de filmes aos quais tive acesso até hoje (meu novo vício, mas este não incomoda ninguém...pelo menos eu acho que não!); não ficariam bravos se eu tivesse roído as unhas ao invés de ter corroído o coração no dia da morte do meu pai. Afinal, roeram todas as unhas deles quando a UFRGS divulgou o listão do vestibular...naquele dia a minha mãe gastou os dedos, ligando para todos eles e outros parentes e amigos a fim de compartilhar o orgulho da filha que era“bicho do mato” e agora é “bixo”. E quem diria, a dona Neusa, minha mãe, roeu as unhas quando a “Bicho Seco” (minha banda) foi fazer seu primeiro show em um bar no bairro Cidade Baixa e eu...nem liguei, deixa ela!

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